Thursday, September 28, 2006

Fiona & Friends #6 - João Barreto says

Trechos de carta de candidatura a emprego de um jovem contabilista que se dispersava sempre que pegava numa caneta

Caro senhor,

Em resposta ao anúncio… (…)

(…) Encontro-me actualmente em situação… (…)

(…) Do sítio em que vim sentar-me consigo avistar uma sucessão das traseiras de vários edifícios antigos. É uma paisagem bonita que me remete para um imaginário extraordinariamente íntimo e incomunicável, um pouco como certas peças de roupa de certas mulheres que nunca me são indiferentes. Penso que seria a partir destas imagens, ou destas condensações de memória, que haveria de nascer toda a minha pintura, se se tivesse dado o caso de eu calhar pintor. Enfim, julgo que não se calha pintor. Mas calha-se qualquer coisa que poderíamos classificar do mais pintor ao menos pintor. E, nesse sentido, creio que poderia ter calhado bem menos pintor. (…)

(…) Não sei precisar em que época comecei a pensar nestas coisas. Como seria eu se jamais alguém me tivesse feito uma só pergunta? Se nunca tivesse utilizado palavras para satisfazer outrém? O que diria eu a partir deste ponto original, representando o desejo mais que a necessidade? O que me diriam estas palavras vitais? (…)

(…) Hoje queria escrever na justa medida da minha vida por contar, sem contudo contar nada, e sem propriamente deixar de fazê-lo. Queria dizer-lhe qualquer coisa, caro senhor. (…)

(…) Procuro imaginá-lo a si. Você percebe o significado deste constrangimento na ilharga, sem que chegue a formulá-lo. Agora que vai reformar-se, que a história do mundo o engole lentamente, depois de tanto tempo de pés firmes à proa, agora volta a casa e repara, com mais desprezo do que surpresa ou nojo, que não esperam nada de si. O sentimento é mútuo. (…)

(…) Em algum momento da minha história devo ter trocado as parcelas de um raciocínio, passando a ocupar-me dos preparativos para a vida mais do que propriamente da vida. (…)

(…) porque inteligência e compreensão não podem ser confundidas. (…)

(…) pelo caminho, atravessou-me esta visão de umas traseiras. E vem sendo tão raro que a realidade seja evocativa (…)

(…) Julgo que acabarei por embarcar rumo às negras matas do sul… (…)

Sem outro assunto,
(...)

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