Saturday, November 11, 2006

O fim do neoplasia existencial – Parte I

Aceitei.
Haverá sempre uma parte de mim que não esquece.
Nestes últimos dois anos, senti o peso imaginário dos teus braços à minha volta, acordei à hora de sempre para uma chamada que já não acontece. Repeti na minha cabeça diálogos que já não tinham eco real. Tive sonhos de contornos passados, bebi de tudo e de nada, mas coisa alguma me tirou a sede de ti.

Tentei de tudo: o mutismo e a vulgarização do contacto. Ser tudo menos “ex” e ser ex- tudo. Tentei limpar-te a memória, tentei abrilhantá-la. Tentei a culpa, para que nunca mais ganhasse vergonha na cara para te ver e, em vão tão descontente, tentei a raiva da vítima - para que o meu coração apodrecesse de tal forma que nunca mais fosse capaz de amar – a ti ou a qualquer outra pessoa.

De ti já carreguei o negro do ódio, por não conseguir engolir o sabor da incapacidade de ligar dois mundos. O resultado, durante tanto tempo com intervalos intermináveis, foi uma zona cinzenta tão paradoxalmente cheia de cor, de saltos no abismo e lutas no precipício, onde só aí me aprendi a encontrar. Dizias tantas e tantas vezes, num olhar esgueirado abraçado a uma guitarra: a vista da montanha russa é a melhor.

De ti já enchi a cara de lágrimas e sorrisos, plena de uma emoção mórbida que nos foi matando aos dois. Quanto mais golpes sofria, mais de mim te dava; quanto mais te tirava ao mundo, menos te guardava para mim. Levaste-me contigo e deste-me uma vida para viver, e senti que o meu lugar no mundo era quando me protegia dele, escondida no teu peito.

Estou certa: não seria o que sou hoje não fosses tu. És como um acidente ao qual não se pode escapar ileso. Nos instantes antes e depois, tudo surge mais nítido, e sempre – sempre! – mais vívido. Depois do acidente há a névoa, surgem as feridas, mas nada se compara à sensação que te coloca o corpo em transe, a mente noutra dimensão, a vida que te corre nas veias e não pára.

Aceitei. E aceitei o conformismo da minha decisão.

E a crítica a que tal me expõe. Diante de ti, estou como sempre: numa espera de mil compassos. Uns passam rápido e, vá lá, até me dizem que tomei a decisão que podia. Outros, muitos outros, passam lento, como uma morte longa e angustiante.

Aceitei. Aceitei que és sangue nas minhas veias. Que não tenho como parar-te em mim.

Mas a verdade é que a vida continua. Nestes últimos dois anos, a minha necessidade de continuar a dizer-te o que corre na minha vida e nas minhas veias foi enorme, ao ponto de me disciplinar num contexto em que o anonimato é ajuda numa solidão ilusória, um espaço virtual onde poderia continuar a mostrar-te a minha vida como ela corria, dia após dia. Não quero glória por isso, foi superior à minha vontade. Se o lado direito do meu cérebro mandasse mais do que o esquerdo, não o faria. Mas a única razão pela qual continuei esta estranha forma de vida foste tu. A única forma possível de continuar a partilhar os meus dias contigo.

Hoje termina. Não porque a vontade tenha desaparecido. Não porque já não queira partilhar. Corres nas minhas veias e sei que isso não terminará nunca. Para o bem e para o mal.

Mas a minha vida, decidi, vai continuar. Não sei o que será, talvez haja uma razão qualquer, um desígnio insondável, para o tudo ter esbarrado violentamente no nada, esmagando-nos pelo meio. Talvez cada vez que ouça uma linha de baixo reveja, em lentidão, a tua altura. Talvez cada vez que sinta um traste de guitarra nas minhas mãos, sinta a parte de ti em mim que ficou. Talvez por isso ela está encostada a um canto, intacta. Tenho que deixá-la quieta.

“Talvez, de facto”, me console no caminho da normatividade. “Talvez, de facto”, me junte ao exército de soldadinhos cinzentos, que casam porque sim e têm filhos porque…acontece. “Talvez”, ainda, “de facto”, fique também siderada com o crédito para a compra da casa maior, a cozinha miele e o écran de não-sei-quantas-polegadas. “Talvez”, e porque não, invente dores de cabeça e alegue insónias para dormir noutro quarto. Talvez, muito provavelmente, tenha de me sentar na cama do meu filho e dizer “a mãe e o pai continuam amigos e a gostar de ti, mas agora cada um viverá na sua casa”.

E, “talvez”, no dia em que eu tiver a certeza que o caminho do dever está esgotado, que saber onde durmo e onde acordo não me dá conforto que chegue, então talvez tenha chegado o dia de perguntar pela última vez onde estás e simplesmente…chegar.

Quanto mais escrevo a palavra “talvez”, mais sinto que é uma certeza. Do género das tuas certezas: ambíguas, ditas com a convicção de quem nada tem por adquirido. Sei, ainda assim, que cá estarei para o que houver a viver. Mais uma vez, sem certezas, cheia de “talvez”, de “ mas “ e de “ses”.

The original soundtrack for this post is “Keep Breathing” – Ingrid Michaelson

1 Comments:

Blogger Unknown said...

!!!!!!!! Thank you
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2:50 AM  

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