Friday, October 20, 2006

Há quem não caminhe

Sempre achou estranha aquela forma de estar presente, dobrada sobre a mesa, pedindo desculpa por ali estar. Não se trata, porém, da existência comezinha de quem pede desculpa de cada vez que exala uma palavra. Caso contrário, formas e formatos saíriam certamente diferentes.

Tinha uma sombra indelével, os sonhos curvados perante a vida, mas uma chibata mental ordenava uma distância considerável entre palavras e actos, ao encadear a ambos em zonas de choque.

E era nesses momentos, com sombra nos gestos e tom grave na voz, que falava de ser quem era. Uma leve náusea, um copo erguido, uma dor passageira, tudo como toques de inabituação.

Sempre dizia que tinha sido sua obrigação sobreviver, mesmo entre neons de vida. Entre paredes desconcertantes ("a puta da parede", sempre "a puta da parede"), inventava palavras e escrevia-as em cantos escondidos, por trás de uma fotografia, de um candeeiro ou na esquina de um móvel. As paredes desconcertantes parecem juntar letras e consoantes, em uníssono, da esquerda para a direita e vice-versa: as tuas lágrimas foram o início e serão o teu fim.

Pensando em retrospectiva,
comportou-se como o esquisso desconfortável, o papel rebuscado e esmagado,
que sempre insiste em aparecer fora do caixote do lixo.

Surge sempre como o desenho desajeitado, inapropriado, sem brilho, sem as linhas firmes desejáveis.

No entanto, mesmo em toda a sua inoperância e incapacidade, não deixará que o criador se esqueça de todos os adjectivos e de todos os nomes: sem jeito, sem tempo, sem tudo, sem nada.

Se fosse um objecto, nada seria. Só uma interminável e inconsequente lista de palavras.

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