Monday, December 05, 2005

Da inacessibilidade

«Clerfayt teria desejado parar o carro e beijá-la; mas não sabia bem o que aconteceria se o fizesse. Sentia-se enganado, frustrado, e sentia também um desejo mórbido de destruir tudo à sua volta. Começando por investir com o carro contra as belas tulipas amarelas. Depois de o fazer, de tudo destruir, desejaria levar Lillian consigo para um sítio mais íntimo, mesmo secreto. Mas para onde? Para uma caverna, um esconderijo, um quarto? Para qualquer parte onde pudesse libertar-se e libertar Lillian da muda interrogação daqueles olhos dela, que davam a impressão que nunca o fitavam directamente.»

Erich-Maria Remarche in O céu não tem favoritos

Nunca consegui perceber este meu paradoxo: para quem se dá em tudo e em nada, que derrama vida nos outros só porque sim (e subtrai vida nos outros só porque não), esta história de eu ser inacessível - atirada género pedra à moda da entifada por gente diversa, de vários quadrantes e portanto insuspeita - chateia-me. Não é só por eu não querer isso para mim: tenho uma queda por divas (sobretudo as más), mas como uma projecção do que nunca serei.

Bem sei que a vida, sobretudo a nossa contaminação nos outros e vice-versa, é feita de auto-regulação. Que nos devemos dar para isto ter mais piada, darmo-nos a quem vale a pena (e só assim vale a pena). Mas ter a etiqueta de inacessível é algo que não quero para mim; porque vai contra aquilo que pretendo de mim, porque vai contra aquilo que sou na realidade. E, depois de bater, debater e rebater esta imagem de mim a quem a divulga, confronto-me com uma dilaceração incontornável: nem no espelho me olho nos olhos.

É, trabalho à parte, só houve uma pessoa que fui capaz de olhar nos olhos, sem medo, sem constrangimento, sem desconforto. Um sintoma incontornável da tal inacessibilidade de que me acusam. É, devo ser mesmo inacessível. Durante algum tempo, ainda pensei - e valorizei - este suposto mecanismo de selecção interpessoal. Mas deixei de o fazer, lutei contra ele e pensei ter vencido (fora aquele "pormenorzinho" de não olhar nos olhos de ninguém). E, agora, 5 anos volvidos e duas ressureições pelo meio, a acusação volta a ser a mesma. Merda para isto.

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