Tuesday, January 24, 2006

Os mistérios da fé


«O medo faz-nos companhia. Só gosto do que é perigoso. Só o sofrimento nos faz crescer. Só um sofrimento maior pode vencer o outro. Quando a alma dói, é preciso urgentemente encontrar outra que nos faça ser ainda mais. Para depois voltar à superfície das coisas, ao desequilibrado perigo da contradição. Simão, isto é a minha religião, só minha, não sei de onde vem, da vida certamente. Ou então ficção minha. Já me aconteceu curar um desgosto de amor através de um desgosto maior, para depois voltar a amar. A existência não é um jogo, é uma estratégia.»

Pedro Paixão, Os Corações também se gastam.

A idade torna-nos cada vez mais relativistas e, de alguma forma, mais tolerantes. Ele disse-me que me poderia receber em qualquer formato, confissão ou fora dela. Preferi falar com um padre como pessoa (tolerância sim, mas nem tanto).

Não sei se foi do padre que escolhi. Não sei se foi talento da parte dele em perceber que ortodoxia e dogmatismo não iriam de encontro às minhas expectativas e não ajudariam um único milímetro, apenas avivar ressabiamentos antigos.

Não sabia como começar. Comecei por perguntar-lhe para que serve uma mulher. Ele riu-se, com um gargalhada que me era familiar. Quando esperava o débito da história de adão e eva, ou a fundamental presença do feminino na liturgia católica, ele responde: para o mesmo que o homem - para ser feliz.

Mas isso não é paganismo? O meu deus vê-se num sorriso partilhado, em momentos de festa ou num café polvilhado sorvido com emoção, nas trocas de afectos.

Tu achas que isso é paganismo? Não creio que o meu Deus seja muito diferente do teu.

Mas não é isso que me incomoda, senhor padre.

Quero saber porquês. Quero saber o que fazer com a minha vida, o porquê deste compasso de espera que me soa a eternidade, o que fazer com esta cratera de vazio que me invadiu. Quero saber para que serve a minha vida, se o tentar fazer a diferença na vida dos outros pode servir como propósito de vida e não alimentar essa mesma cratera. E se é possível que este vazio me seja imposto por um desígnio de nível superior, uma espécie de custo para um benefício maior. Se este caminho é desenhado por mim.

Queres respostas que ninguém te pode dar. Só tu. O caminho faz-se andando, e não podes queimar etapas. Tu vês a vida como um fim em si mesmo. Eu vejo a vida como um meio para atingir outro fim, um fim maior.

Ok, senhor padre. Isso também eu sei. Mas sabe aquela história do filme, em que só vemos fragmentos e por isso não percebemos o que se está a passar?

Não. Explica-me tu.

E quando ia começar a falar de Schoppenhaur, parei.

Percebeste, agora?

Só no fim vais perceber. Pode ser melhor do que pensas, pode ser pior do que pensas. Igual não será certamente. Podes pensar no porquê, claro que podes. Mas o caminho faz-se também de paragens, compassos de espera. Estás parada porque estás numa encruzilhada. Podes é não estar a vê-la, mas é só mais uma. Ninguém tem caminhos iguais, embora alguns caminhos te pareçam mais iguais do que outros. Podes ir buscar esperança onde quiseres. Eu vou buscá-la ao Evangelho, tu vais buscá-la onde quiseres. Mas caminha.

Eu só precisava que ele me dissesse que isto acontece por alguma razão. Não o disse, mas cheguei lá por mim. Há uma razão, eu só não a estou a ver agora. Um dia irei perceber, num dia em que os olhos turvados, ecoados pelo medo tão conhecido, já não me impeçam de entender.

Porque não morrerei sozinha. Mesmo sem futuro partilhado, "comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre." (Miguel Sousa Tavares )

4 Comments:

Blogger bonifaceo said...

Olá! Vim retribuir a visita.
A fé é uma coisa delicada, estive ligado à Igreja através da catequese e posteriormente do grupo de jovens uns 15 ou 16 anos mas há um ano e meio atrás desliguei-me bastante, até deixei de ir à missa...

11:28 AM  
Blogger fiona bacana said...

Mas sabes q a fé de q falo n é necessariamente a fé institucional, nomeadamente a da Igreja Católica. Daí ter colocado o excerto do livro do Pedro Paixão, em que uma Rita explica a um Simão a certeza que tem das coisas e explica a sua "fé", como eu não uma fé institucionalizada, mas uma fé pessoal, uma crença criada e imune a institucionalizações ou a dogmas exacerbados. Uma espécie de fé pessoal e pessoalizada, sem nada de divino ou metafísico à mistura.

Qto à missa, já fui menos, mais e menos tolerante outra vez. tenho alguma dificuldade em conceber um deus fechado num edifício ou representado institucionalmente.

3:50 AM  
Blogger bonifaceo said...

Mas a ideia que se tem, em qualquer religião é que Deus está sempre presente em todo o lado, o objectivo da missa ou eucaristia é rezar em comunidade.

8:20 PM  
Blogger fiona bacana said...

de acordo. mas por isso mesmo é q me causa dissonância...comunhão de fés individualizadas num espaço comum?

2:07 AM  

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