Thursday, June 29, 2006

Não há bela sem senão

...Ao longo destes últimos três anos, tenho-me cruzado com todos eles, todos os tipos, os grandes do mundo literário, por essas paragens de culto, das quais a mítica Feira de Frankfurt, espécie de feira de gado de escritores, é a mais emblemática e seguramente a mais deprimente. Entre todos os avistados ou aproximados, o que mais me impressionou foi o celebrado, o devastador, o esmagador, Salman Rushdie, destinado por todos os oráculos a ser um próximo Prémio Nobel. Confesso que até sou um admirador do homem, como leitor. Mas, à medida que nos vamos encontrando por aí - no Brasil, em Frankfurt, em Itália -, e que ele me vai olhando cada vez com mais desconfiança (serei um terrorista disfarçado de ocidental e encarregue de executar a «fatwa»?), vou-me divertindo cada vez mais a observá-lo e à sua curiosidade. Fisicamente, o tipo é sinistro, verdadeiramente satânico, como nos «Versículos»: parece o resultado do cruzamento de um gato com um demónio numa noite de trovoada em Madrasta. Como se isso não fosse suficiente para chamar as atenções, faz-se acompanhar por uma mulher linda de morrer, uns trinta anos mais nova e uns trinta centímetros mais alta, cujas mini-saias começam aí pela altura dos ombros dele, usualmente escoltada por um harém particular - uma coisa também bastante comum entre as mulheres dos génios da literatura moderna. Ele, o Salman (permitam-me esta familiaridade recente), vai atirando - enquanto se desloca, senta ou posa - umas migalhas de fama para o ar e para o chão, que os políticos, os editores, os organizadores e os jornalistas locais recolhem, como se fossem pérolas do Rajasthan. No resto, é um serzinho antipático, arrogante, insuportável de vaidade. Só um grande povo, como os ingleses, se disporia a gastar uma fortuna, anos a fio, para proteger esta pérola preciosa dos delírios de «sharia» do tresloucado «ayatollah» Khomeiny (que Alá o guarde em paz!).

Inevitavelmente, é fora da galeria dos muito famosos que se encontram os escritores que são também pessoas normais, simpáticas, acessíveis, com quem é possível ter um agradável almoço ou ficar à noite numa varanda a beber um copo e a ouvir histórias - não as histórias deles próprios e do seu sucesso, mas verdadeiras histórias, contadas por escritores. A minha curta experiência, que não é ilustrativa de coisa alguma, fez-me concluir, até à data, que é sobretudo entre as mulheres e as latino-americanas que está a maioria deles. A proximidade linguística e cultural seguramente que ajuda, assim como o facto de ainda acharem que é mais importante conhecerem - o sítio onde estão e as pessoas à volta - do que serem conhecidas.
Pessoalmente, acho que há defeitos piores do que a vaidade, sobretudo a vaidade legítima. A vaidade causa sobretudo danos aos próprios, impedindo-os de estarem atentos ao que os rodeia, de conhecerem as pessoas que interessam e não apenas as que os adulam, de verem o mundo como ele é e não em plano superior, de cima para baixo. Mas, num escritor, a vaidade é particularmente contraditória com a sua condição, pois que esta passa pela faculdade de ser capaz de olhar o mundo e dele dar testemunho - o que não é possível quando o mais que se vê à frente é a si próprio. Um grande escritor disse-me um dia isto: «Tudo o que tenho para dizer está nos meus livros. O resto é aquilo que vejo e só quero que me deixem ver em paz!».


Miguel Sousa Tavares in Expresso

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