Tuesday, October 31, 2006

M.A.N.O.

Hoje é o dia em que voltas ao mundo. É uma ilusão torpe achares que foi tudo feito progressivamente. Não vai ser, não é. Nunca fomos de meias-tintas, somos mais o drama do "tudo ou nada". E hoje voltas ao mesmo mundo que te cuspiu num acidente há muito anunciado. A sensação de incapacidade em mim é evidente. Talvez a mesma que um dia sentiste em ti, quando um registo de Hospital fez soar todos os alarmes.

O estúpido de tudo isto é que, revendo a cronologia dos actos, o enredo tinha uma cena final previsível. O nosso filme, questões geracionais à parte, é o mesmo. Na terra do Peter Pan, onde ambos vivemos, o trabalho não é preciso, as madrugadas é que contam, o álcool e sabe-se lá mais o quê só servem para distorcer uma realidade que por si só já é bem torcidinha por nós. Mas só isso vale.

No fundo somos uns putos. Incapazes. Emotional cripples. Que se mentem a si próprios. Que criam uma realidade, projectam-na em sessões de holograma que os outros engolem de bom grado. Porque sabemos bem o que querem, valha-nos isso. Vêm-nos com as brechas pelas quais deixamos os outros espreitar. Alguns deixamos entrar; poucos, como convém. Não vá a mentira ser constatada por todos.

A mentira de que afinal somos só uns putos. Peter Pans eternos. Que vivemos para os outros, não por um qualquer tique altruísta, mas porque somos apenas incapazes de viver para nós próprios. Porque achamos que não vale a pena. Porque achamos que não merecemos.

E então acordas agora para a vida. Sais do coma (ironic, isn’t it?) para te voltares a ver ao espelho que evitamos há demasiados anos. É como a alegoria da caverna que estudamos até à exaustão (que é como quem diz, transformamos em piadas para dar aos ignorantes), agora abres os olhos e dói. São as dores de crescimento de que te falava, lembras-te?

E então creio que vamos continuar a ser paradoxos. A desdenhar no amor (“afinal são todos muletas uns dos outros”), para secretamente esperar pela pessoa que nos caia no colo (e em quem, inevitavelmente, “deixaremos fazer cair um copo”, incapazes como somos). A destelhar na realidade que nos envolve. A dizer mal do caminho da carneirada, invejando o conforto que daí advém. A criticar as concessões, para o fazer de forma subtil – ainda que muito mais negligé – no dia a dia.

Disse-te um dia que não tenho certeza alguma na vida: mas sei, porque sim, que seja qual for o caminho, a única coisa que sei é que lá estarás comigo. Para continuarmos a ser Peter Pans, a ver todo o crescimento na proporção da dor inerente ao mesmo, para contabilizarmos quem gasta mais em pensão de alimentos nos primeiro, segundo e terceiro casamento; para discutirmos sobre as tuas posições neo-liberais na Economia e as minhas visões “comunas” do mundo; para nos rirmos da vidinha dos nossos coleguinhas que hoje são CEO’s de empresas, quando eram murcões e cromos quando eram mais novos, os tais que seguem o tal caminho do “pague tudo sem esforço: crédito à habitação+crédito para casa+férias no Dubai+DSP para os filhos”, tudo numa prestação eterna bem perto de si. O empréstimo que eles contraem só tem um montante em dívida: A VIDA.

Mas para nós, Mano, não há forma de viver sem morrermos pelo meio. Uma parte de ti morre hoje, se calhar vai virar fantasma para te assombrar volta e meia, mas há uma nova parte de ti, mais real, menos distorcida, mais tu, que vai viver agora.

E eu cá estarei para ver. Ao teu lado, sempre. No matter what.


:the ost for this post is "Acrobat" - U2:
«And you can swallow
Or you can spit
You can throw it up
Or choke on it
And you can dream
So dream out loud
You know that your time is coming 'round
So don't let the bastards grind you down...
No, nothing makes sense
Nothing seems to fit
I know you'd hit out,
If you only knew who to hit
And I'd join the movement
If there was one I could believe in
Yeah I'd break bread and wine
If there was a church I could receive in
'cause I need it now
To take a cup
To fill it up
To drink it slow
I can't let you go
(And we) must be an acrobat
To talk like this
And act like that
And you can dream
So dream out loud
And don't let the bastards grind you down...»

Monday, October 30, 2006

O meu tipo de clássico


Nem sei o que me deu mais gozo:
...se ver o simãozinho pensar que tinha conseguido passar incólume no Dragão, para depois acabar cabisbaixo e ter de render-se à superioridade inequívoca do FC Porto;
...se ver os benfiquistas que conseguiram ir ao Dragão irem do céu ao inferno - local aliás onde pertencem - em apenas 8 minutinhos;
...se o golo de Quaresma;
...se a forma absolutamente cruel como o FC Porto venceu os vermelhos.

É que, bem vistas as coisas, escrito por um argumentista não saía melhor: aos 20 minutos, o espectro da goleada pairava por todo o lado, bem visível na cara do acólito Fernando Santos.

Sofremos, mas tão somente para tornar ainda mais cruel a derrota dos vermelhos. Quando eles pensavam ir embora a rir-se, um herói improvável, um pobre coitado que deve ter no joelho esquerdo mais platina do que Madonna tem em discos, um tal de Bruno Moraes, enfia a bola onde é o seu lugar mais do que natural: na baliza dos vermelhos, rematada nos últimos 30 segundos de um jogo onde só por mera imaginação se poderia sequer conceber uma igualdade entre as equipas.

Mesmo sem necessidade de sofrer tanto, tal foi a superioridade no primeiro tempo, a verdade é que foi o meu tipo de clássico: o porto a ganhar e os vermelhos a sofrerem da forma mais cruel possível - que é quando lhes dão a mera ilusão de igualdade.
Thank god she's back

«So that's how you found me
Rain falling around me
Lookin down at a worm
With a long way to go
And the traffic was hissing by
And i was homesick
And i was high

I was surrounded by a language
In which i could say only hello
And thank you very much
But you spoke so i could understand
And i drew a treasure map on your hand

And you were no picnic
You were no prize
But you had just enough pathos
To keep me hypnotized
Hypnotized...»

Ani DiFranco - "Hypnotized" (Reprieve-2006)

Thursday, October 26, 2006

Blog do Dia - Era uma vez no Porto

Era uma vez no Porto

Se não "O", certamente um dos melhores espaços no Porto, colocando-o uns anitos mais à frente do fast-consuming e padronizado estilo vigente no burgo. Eu sou, assumidamente, fã.

Wednesday, October 25, 2006

Shadowboxer - Fiona Apple

Tuesday, October 24, 2006

Site do dia

Que não um blog, feito por quem realmente percebe da poda, um verdadeiro predestinado.
Eu cá fartei-me de rir.

Friday, October 20, 2006

SMS...da noite #2

«Não te mata quando chega a hora do dia em que fechas a porta do quarto, porque já não aguentas o mundo lá fora, e desligas a luz do candeeiro como quem interrompe vida?just to share.»

SMS...da noite

«Às vezes fico tão triste contigo, que gostava de não ter esta certeza de que até gostas de mim, só para poder ter uma explicação sobre o não quereres saber da minha vida. Estranho, não é? Como se pode querer tão bem e não precisar de saber da pessoa...»

Há quem não caminhe

Sempre achou estranha aquela forma de estar presente, dobrada sobre a mesa, pedindo desculpa por ali estar. Não se trata, porém, da existência comezinha de quem pede desculpa de cada vez que exala uma palavra. Caso contrário, formas e formatos saíriam certamente diferentes.

Tinha uma sombra indelével, os sonhos curvados perante a vida, mas uma chibata mental ordenava uma distância considerável entre palavras e actos, ao encadear a ambos em zonas de choque.

E era nesses momentos, com sombra nos gestos e tom grave na voz, que falava de ser quem era. Uma leve náusea, um copo erguido, uma dor passageira, tudo como toques de inabituação.

Sempre dizia que tinha sido sua obrigação sobreviver, mesmo entre neons de vida. Entre paredes desconcertantes ("a puta da parede", sempre "a puta da parede"), inventava palavras e escrevia-as em cantos escondidos, por trás de uma fotografia, de um candeeiro ou na esquina de um móvel. As paredes desconcertantes parecem juntar letras e consoantes, em uníssono, da esquerda para a direita e vice-versa: as tuas lágrimas foram o início e serão o teu fim.

Pensando em retrospectiva,
comportou-se como o esquisso desconfortável, o papel rebuscado e esmagado,
que sempre insiste em aparecer fora do caixote do lixo.

Surge sempre como o desenho desajeitado, inapropriado, sem brilho, sem as linhas firmes desejáveis.

No entanto, mesmo em toda a sua inoperância e incapacidade, não deixará que o criador se esqueça de todos os adjectivos e de todos os nomes: sem jeito, sem tempo, sem tudo, sem nada.

Se fosse um objecto, nada seria. Só uma interminável e inconsequente lista de palavras.

Há coisas que transbordam charme...


e eu lembrei-me de umas quantas "Onassy's"...

Thursday, October 19, 2006

Fiona and Friends #9 - Lipa says "O meu fim para o teu blog"

«Porque nunca haverá fim nas palavras,

porque o que marca nunca acaba,

e porque eu não quero...

Porquê?!...

Beijo eterno.»

The OST for this post is "In the end" - Linking Park

Tuesday, October 17, 2006

A palavra "desassossego", por si só...

«Estética do Artifício

A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.»

Bernardo Soares/Fernando Pessoa - "Livro do Desassossego"

«Ah... Se eu pudesse não partir, eu ficava aqui contigo...Se eu pudesse não querer... Descobrir...Ah se eu pudesse não escolher...Eu juro, era este o meu abrigo.Se eu pudesse não saber que há mais...Mas como pode a lua não querer o céu...?Como pode o mar não querer o chão...?Como pode a vontade acalmar o desejo?Como posso eu ficar?...»
Margarida Pinto - Apontamento

Monday, October 16, 2006

Fiona and friends #8 - Jackie says

Pediste-me que te escrevesse um texto. Não fizeste qualquer tipo de exigência. Deste-me liberdade para esvaziar a alma… Fiquei honrada, confesso.

De início não me pareceu uma tarefa difícil. Sempre achei que tinha jeito com as palavras. Que era uma comunicadora nata (ou não falasse eu pelos cotovelos!!). Porque gosto de uma boa discussão: uma verborreia de argumentos, alguém sempre a “deitar lenha para a fogueira”, muitos prós e contras… Calorosa! Porque adoro aqueles jantares que se prolongam deliciosamente pela madrugada, regados a sangria e enfeitados com conversas tipicamente femininas! Porque passo horas ao telefone, ou não houvesse sempre mais alguma coisa a dizer ou comentar. No fundo, adoro falar, conversar, comentar, trocar ideias, discutir, coscuvilhar…

:Lusitano - o local do crime de tanta e tanta conversa:

Mas pensando melhor, o teu convite criou-me um problema: Sobre o que é que vou escrever?! Escrevo sobre a minha experiência no cruel mundo do trabalho? Invento uma história de amor com final feliz? Ou partilho um desgosto daqueles que deixam o coração em mil pedacinhos? Talvez faça um ensaio sobre a rotina que tende a fazer parte da minha vida? Verto as lágrimas porque o príncipe virou sapo? Comento o último episódio do “Sex & the City”? Falo da minha paixão inexplicável pelo cor de rosa? Descrevo as inúmeras vantagens de partir em Interrail? Conto a frustração que sinto por não poder trabalhar de calças de ganga? Ou confesso as maravilhas de um “caso”? Opino sobre o último filme do Almodovar? Disserto sobre as saudades que me apertam o peito às 5h da manhã? Teorizo sobre a atracção pelos “filhos da mãe”? Ou berro a plenos pulmões o quanto estou agradecida por UMA PESSOA TÃO ESPECIAL FAZER PARTE DA MINHA VIDA?

Obrigada pelo convite. Foi um prazer!

The OST for this post is: Green Day - "Time of your life"

Wednesday, October 11, 2006

Medo. Muito Medo.

Tenho medo de viver num país em que uma pessoa como Paulo Portas chega a presidente de um partido. Menos mal, esse partido é o CDS-PP (teria consequências mais gravosas se fosse um partido da oligarquia PS-PSD).

Não tive alegria ao ver o PS eleito com maioria absoluta. Tal aconteceu apenas porque considero que, depois de 2 Governos deixados a meio (Guterres e Barroso, como eu vos compreendo!) e um Governo que nem sequer o chegou a ser (Santana Lopes, esse "ganda maluco"), era absolutamente essencial que Portugal tivesse um Governo que não precisasse de acordos à limiano para exercer a sua função.

Confesso, gosto de Sócrates. Confesso, gostei da boca do António Vitorino ao melhor estilo do "acabou a brincadeira". Não gostei, confesso, que António Vitorino não tivesse sido Ministro (embora tenha a noção de que não o foi porque não o quis). Mas gosto da máquina que Sócrates oleou, onde tudo está alerta 24 h por dia, dá a sensação de que ele está em controlo da coisa (algo que já não me lembro ter visto, ironia das ironias, depois de Cavaco Silva).

Mas mais do que a vitória do PS com a maioria absoluta, vibrei - até bati palmas - com o discurso neo-humilde e quase a roçar a lágrima no canto do olho do Presidente do CDS-PP. "Adeus", disse ele. Eu tremi, porque sabia que ele iria voltar um dia - mas mais uma vez, fiquei emocionada, por o ver a ir pela porta dos fundos. Emocionada pelo alívio.

Explico-vos porquê: o Paulinho das feiras é o símbolo do que de pior existe neste país. Um homem que constrói um semanário de referência com o Miguel Esteves Cardoso, numa perspectiva quase anárquica do sim-porque-sim de oposição inexistente no tempo do Cavaquismo, instrumentaliza esse mesmo jornal - a partir de certa altura e já sem o Miguel Esteves Cardoso - para o seu próprio projecto político. A missão do "Independente" deixou de sê-la, para passar a alimentar as ambições políticas de quem deu mais uma machadada, desta vez em Manuel Monteiro, para chegar a presidente do CDS-PP.

E quando lhe saiu a sorte grande (PSD eleito como Governo mas sem maioria absoluta e portanto obrigado a coligar-se), a minha vontade foi emigrar. Para mim, Paulo Portas é uma espécie de Le Pen mas sem o espalhafato e com muito maior sentido político. E tenho a reminiscência - culpa minha, decerto - de que os seus discursos são copiados a decalque dos de Goebbels. Mas é culpa minha, certamente.

Cada vez que Paulo Portas fala, tenho medo. Tenho medo pelos emigrantes, tenho medo pelas pessoas que trabalham por conta de outrém, tenho medo pelas mulheres, tenho medo pelos artistas, tenho medo dos que não são católicos cristãos praticantes, tenho medo. Não me sinto segura num país onde Paulo Portas tem um papel político-partidário.

Concertado ou não com Luis Nobre Guedes, a verdade é que Paulo Portas, como disse e bem o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, saiu do CDS por uma porta...giratória. Agora anda pelo país a falar às bases, segundo o próprio, para os "ajudar a pensar". Pronto, agora fiquei com medo de quem pensa pela própria cabeça. Ontem o soundbyte foi acerca dos emigrantes. O Paulo Portas tem medo dos emigrantes. Estou com ele, só com uma pequena diferença subtil: tenho medo pelos emigrantes. Não deve ser fácil ter um sonho, aplicá-lo a um país como Portugal onde os sonhos se esfumam depressa, e ainda por cima sujeitar-se a ter um fulano a falar na TV sobre o perigo que eles são. Pensem comigo: se eles forem legalizados, pagam impostos, certo?

Hoje Paulo Portas fala, no Porto, sobre o Islão. Vai ser bonito, vai.

Medo. Muito medo.

:The original OST for this post is "Rebel" - Lauryn Hill

Tuesday, October 10, 2006

Se eu fosse ingénua até ficava surpreendida

O Hard Club vai fechar.

Não há outro espaço no Grande Porto como aquele. Mas a verdade é que hoje em dia a música electrónica é que agita a cabecinha desta gente que sonha com 48k e com linguagem de programação.

O grunge e o hard n' heavy desapareceram quase do mapa. De jeito, para além das antiguidades, só cá andam os Audioslave. Não me aborrece a falta de airplay, mas aborrece-me não ter aquele sítio disponível, com uma arquitectura fantástica e adequada à onda HC, onde já vi - só para citar assim de cabeça - Ornatos Violeta, Clã, K's Choice, dEUS e Muse. O HC tinha essa grande vantagem de conseguir trazer grandes bandas antes ainda de serem mais conhecidas.

Quando surgiu o HC , veio potenciar o efeito do "Palha D'Aço", procurando ser assim uma espécie de Troubador e Rainbow (LA) ou CBGB's (NY). Agora esvaziou. Resta-me a esperança de que apenas se mudem para outro sítio mais pequeno e que o espírito do HC não se perca. Até porque a história do rock é isso mesmo: veio o punk, mais tarde veio o pop e toda a gente pensou "rock is dead". No it's not. NO, IT'S NOT. Só vai só voltar com mais força, tal como aconteceu nos anos 90 com o grunge.

Tuesday, October 03, 2006

Como esquecer - antecipando o fim deste blog

«Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa, como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já não estar lá?

As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?

Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!

É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou coração. Ninguém aguenta estar triste, ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que se pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso primeiro aceitar.

Dizem-nos depois para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se tudo na alma, fica tudo desarrumado.

E o esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Porque é que sempre nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais a falta das pessoas de quem amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. E a felicidade faz-nos sentir pena e culpa de não a podermos partilhar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior.

Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam do afastamento para poderem continuar. Às vezes a presença do objecto amado provoca a interrupção do amor. E a complicação, o curto-circuito, o entaralamento, a contradição que está ali presente, ali, na cara do coração, impedindo-o de continuar.

As pessoas nunca deveriam morrer, nem deixarem de se amar, nem separar-se, nem esquecer-se, mas morrem e deixam e separam-se e esquecem-se. Custa aceitar que os mais velhos, que nos deram vida, tenham de dar a vida para poderem continuar vivos dentro de nós. Mas é preciso aceitar. É preciso aceitar. É preciso sofrer, dar urros, dar murros na mesa, não perceber. E aceitar. Se as pessoas amadas fossem imortais perderíamos o coração. Perderíamos a religiosidade, a paciência, a humanidade até.

Há uma presença interior, uma continuação em nós do que desapareceu, que se ressente do confronto com a presença exterior. É por isso que nunca se deve voltar a um sítio onde se tenha sido muito feliz. Todas as cidades se tornam realmente feias, fisicamente piores, à medida que se enraízam e alindam na memória que guardamos delas no coração. Regressar é fazer mal ao que se guardou.

Uma saudade cuida-se. Nos casos mais tristes separa-se da pessoa que a causou. Continuar com ela, ou apenas vê-la pode desfazer e destruir a beleza do sentimento, as pessoas que se amam mas não se dão bem só conseguem amar-se bem quando não se dão. Mas como esquecer? Como deixar acabar aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer, é preciso aguentar.

Há grandeza no sofrimento. Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor. No meio do remoinho dos erros que nos revolver as entranhas de raiva, do ressentimento, do rancor – temos de encontrar a raíz daquela paixão, a razão original daquele amor.
As pessoas morrem, magoam-se, separam-se, fazem os maiores disparates com a maior das facilidades. Para esquecê-las é preciso chorá-las primeiro. Esta é uma verdade tão antiga que espanta reparar em como ainda temos esperanças de contorná-la. Nos uivos das mulheres nas praias da Nazaré não há “histeria” nem “ignorância” nem “fingimento”. Há a verdade que nós, os modernos, os tranquilizados, os cools, os cobardes, os armados em livres e independentes, os tanto-me-fazes, os anestesiados, temos mesmo de enfrentar.

Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas das Caraíbas, livros de poesia – só há lembrança, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar fôlego. Esta dor tem de ser aguentada e bem sofrida com paciência e fortaleza. Ir a correr para debaixo das saias de quem for é uma reacção natural, mas não serve de nada e faz pouco de nós próprios. A mágoa é um estado natural. Tem o seu tempo e o seu estilo. Tem até uma estranha beleza. Nós somos feitos para aguentar com ela.

Podemos arranjar as maneiras que quisermos de odiar quem amamos, de nos vingarmos delas, de nos pormos a milhas, de lhe pormos os cornos, de lhe compormos redondilhas, mas tudo isso não tem mal. Nem faz bem nenhum. Tudo isso conta como lembrança, tudo isso conta como uma saudade contrariada, enraivecida, embaraçada por ter sido apanhada na via pública, como um bicho preto e feio, um parasita de coração, uma peste inexterminável, barata esperneante: uma saudade de pernas para o ar.

O que é preciso é igualar a intensidade do amor a quem se ama e a quem se perdeu. Para esquecer é preciso dar algo em troca. Os grandes esquecimentos saem sempre caros. É preciso dar tempo, dar dor, dar com a cabeça na parede, dar sangue, dar um pedacinho de carne.

E mesmo assim, mesmo magoado, mesmo sofrendo, mesmo conseguindo guardar na alma o que os braços já não conseguem agarrar, mesmo esperando, mesmo aguentando como um homem, mesmo passando os dias vestida de preto, aos soluços, dobrada sobre a areia de Nazaré, mesmo com muita paciência e muita má-vontade, mesmo assim é possível que não se consiga esquecer nem um bocadinho.

E quando alguém está sempre presente? Quando é tarde. Quando já não se aguenta mais. Quando já é tarde para voltar atrás, percebe-se que há esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. »

Miguel Esteves Cardoso

:the OST for this post is Damien Rice - "The blower's daughter":

Monday, October 02, 2006

Fiona & Friends #8 - Pastorinha says

«Aparições!...

...e de um momento para o outro, sem avisos ou contemplações, vemos a nossa vida em ponto grande e à escala daquilo que somos!
É ao virar de uma esquina ou ao abrir uma janela num dia demasiado quente, que tudo se compõe e, pela primeira vez, faz sentido. Como se todos os fios invisíveis da nossa vida se unissem e nos pregassem o maior de todos os sustos: APARIÇÃO!E de repente, aquele minuto em que chegámos demasido cedo ou demasiado tarde, faz-se o centro do universo e a vida toda gira em redor do acaso!

Há quem passe a vida inteira à procura do milagre do encontro (ou reencontro), há quem não acredite nestas tretas e viva feliz com os presentes banais e há aqueles que, como eu, vivem em assombro: rodeados de Aparições que dão sentido a tudo o que faço e sou!

:Um pneu, um café e uma água com gás:

Felizmente, a porta nunca se fechou quando não devia, nem a esquina se virou na rua errada.
Sem saber bem como, sem ter nisso qualquer papel, a verdade é que existem na minha vida (e não as vi simplesmente. Existem porque me tocam e são parte de mim) várias aparições! Algumas são viscerais (a tal ponto que já não sei bem onde começo e onde ela acaba); outras sonham compulsivamente de cima dos seus saltos altos; outras conseguem, num só gesto de mão ordenar o caos; outras vivem em macro no seu micromundo; e outras... "outra" gosta de mergulho, de ouvir o riso de dois miúdos, do barulho metálico das chaves na porta; gosta de lobos e matilhas e coelhos bébés... e gosta do abismo.só pelo prazer de ver a paisagem!
A "outra" já não é outra. É uma de nós: Aparição!"

The OST for this post is "By your side" - Cocorosie