É escuro, mas, de alguma maneira, transforma-se numa ausência de luz nítida. Tão nítida que me deixa ver os outros, os outros reais, puros. É isso, naquele sítio, naquele momento tudo é puro, só por se conseguir captar esse tudo.
Gostava que percebesses, gostava que um dia estivesses lá, que sentisses…
A ansiedade que cresce, o coração que bate como se tivesse acabado de correr fulminantemente. Procuro o ar onde não há, a calma onde a senti pela última vez… em vão. Naquele espaço de tempo, o tempo tal qual o conhecemos, com minutos, horas e segundos, não existe. O compasso de espera mede-se pelo bombar desenfreado das pulsações, pela inquietude do corpo, não há ritmo acertado, não há pausa, não há.
Sorrio como nunca sorrio e, olhando à volta, vejo-os como raramente o faço. Respiro fundo e percebo que ali, estranhamente ali, eu sou só eu. Sou o pior de mim, sou o melhor de mim, tudo ao mesmo tempo. Tão eu que nem sei como me tolero, enfrento e sobrevivo. Um pedaço de pessoa que fora dali não é mais do que uma fórmula fingida, gasta, colada que não deixa ser mais nada. Um pedaço de pessoa que ali o continua a ser; porém ali é um pedaço real, torto, não simétrico, oscilante, mas, ainda assim, puro.
Sou eu.
Sinto que sou eu.
Sorrio.
Olho outra vez à minha volta e vejo-os apesar da escuridão. Parte de mim, parte de quem hoje sou - os que admiro, os que me irritam, os que me são indiferentes. Todos me formam e ali todos eles são também reais. Eles nem sabem, mas vejo-os na sua totalidade, como se fossem transparentes. O que fazem, como fazem, quando olham... Ali também eles se tornam quem, de facto, são. Será que notam? Estamos à beira do limite e é aí que todos acabamos por ser.
Discuto, como nunca discutiria fora dali - porque sou eu.
Acalmo alguém, como nunca acalmaria fora dali - porque sou eu.
Olho, como nunca o faria fora dali - porque sou eu.
Apaixono-me, como nunca me apaixonaria fora dali - porque sou eu.
Odeio, como nunca odiaria fora dali - porque sou eu.
Porque sou eu.
E isto tudo passa depressa, passa devagar… para quê tentar encaixar no tempo o que lá não cabe.
Sempre o tempo.
Pudesse eu isolar aquele pedaço de tempo…
Não. Nem poderia, nem conseguiria. Medo talvez, mas fora dali nunca conseguirei ser eu. Nem é isso que quero. Acho. Sou o que me permito ser; e cá fora não consigo ser mais do que aquela fórmula.
E não te consigo explicar isto num papel; queria que lá estivesses para te conseguir mostrar os gestos, as imagens, os traços, os cheiros, as luzes… podia ser que percebesses, que visses como vejo e sinto tudo aquilo. Já me conheces, eu sei, melhor do que eu, se calhar… talvez de nada valesse estares lá… já saberias tudo. Podia-te explicar, só isso, e tu ouvirias.
Não.
Tu nunca vais ouvir, estar ou sentir - eu sei. Nunca vais aparecer, nunca te vou dizer ou contar isto. Pergunto: se o sei, se estou certa da tua ausência, porque insisto em sentir através de ti, porque é que no fim daquele sítio, daquele tempo, só me sobras tu? No vazio do fim, tu continuas aqui, em mim, depois de eu já ter regressado à fórmula gasta que sou cá fora; a recordação daquele sítio é toda feita como uma reconstituição para que ouças, onde quer que estejas.
Não ouves.
Regresso à roupa do dia-a-dia. Visto-a, até ao próximo dia em que volte àquele sítio, assim, só para me visitar.
O sítio é o palco.
O tempo é aquele que antecede uma actuação.
Eles são as pessoas com quem partilho a experiência dramática.
Tu, se algum dia leres isto, saberás quem és.