Do Líbano
Sensibilizou-me a entrevista de uma portuguesa que já andou pela SIC Notícias a dar o outro lado do exílio de quem vivia no Líbano. Acho que é um relato equilibrado que deita abaixo uma data de mitos e, coisa rara nos comentadores, de quem viveu aquilo de que fala. Aqui vos deixo...
«Léa, a filha de cinco anos, chorou muito ao despedir-se do pai num dos cais de Beirute. E a mãe então inventou uma história. Explicou-lhe que tinham muita sorte porque iam apanhar um paquete enorme «numa odisseia fabulosa» pelo mediterrâneo. A viagem durou 12 horas, antes de seguirem num Hercules C-130 para Portugal. No fim, Léa disse que tinha visto sereias no mar. Desde a semana passada que uma ponta da família Arbidja está no Estoril e a outra continua no Líbano. Carolina, a mãe, está pessimista. «Infelizmente, tenho a impressão que vai demorar muito tempo até poder voltar para casa».
Estava a trabalhar quando começou o ataque ao Líbano?
Na noite anterior aos primeiros ataques, no dia 13, deitámo-nos um pouco preocupados com as notícias. Acordámos por volta das cinco e tal da manhã. Tinham bombardeado o aeroporto e também o sul do país. Aí começou o clima de pânico na cidade. Mas fui trabalhar. Sou directora de uma creche.
Os pais deixaram as crianças na creche, apesar das bombas?
Só apareceram 14 crianças. A creche fica a dez quilómetros do centro de Beirute e eu ouvia os bombardeamentos ao longe e os aviões a sobrevoar a cidade. Temos uma casa na montanha, a 40 minutos do centro de Beirute, e fomos para lá. Houve uma corrida doida aos supermercados e à gasolina.
Quando decidiu vir para Portugal?
Tenho nacionalidade francesa - a minha mãe é francesa - e comecei a receber mensagens de telemóvel do consulado francês. Pediram para nos inscrevermos nas listas de evacuação. O meu marido esteve no Líbano durante os 15 anos de guerra e achou melhor nós sairmos.
O que é que o seu marido faz?
É responsável pelo departamento internacional de um banco. As operações ficaram num caos. Se o meu marido saísse de lá, podia não perder logo o emprego, mas estaria sujeito a sanções.
Ele não se sente marcado pela longa guerra anterior?
Como todos os libaneses. Quando cheguei ao Líbano, os sírios estavam lá e dominavam o país. Eles diziam: «Maleich, não faz mal». O simples facto de estarem em paz fazia com que deixassem para trás muitas coisas. Havia o irmão que morreu na guerra, a casa que foi bombardeada 20 vezes. Os detalhes não importam. Sente-se uma fúria de viver.
Dizem que Beirute é a capital nocturna do Médio Oriente.
Sai-se até muito tarde. Talvez não tanto como aqui, mas existem três quarteirões só com boites, bares e restaurantes.
Mesmo sendo a maioria da população muçulmana?
Neste momento, há mais muçulmanos do que cristãos, mas não é uma maioria esmagadora. São talvez uns 65 por cento.
Mas bebem álcool como os outros?
O meu marido é católico, mas temos muitos amigos muçulmanos e todos bebem álcool e comem carne de porco. Há muitos tabus que são fingidos: uma rapariga diz que vai dormir a casa de uma amiga. E os pais não fazem perguntas porque é melhor fingir que não se sabe. Tenho um grande amigo «gay» que esteve há dois anos de férias no Líbano. Pedi-lhe para me explicar como é que conseguia conhecer alguém. E ele disse-me: «Não te passa pela cabeça o número de ‘gays’ que há em Beirute».
Já era assim quando chegou a Beirute há seis anos?
Sim. Aliás, as libanesas saem à rua muito mais decotadas do que eu. À noite, andam praticamente nuas. A única mudança que senti é que vejo também mais mulheres tapadas. Soube há pouco tempo que o Hezbollah sustenta 39 mil famílias no Líbano. Dá 1500 dólares por mês a cada uma delas. O Hezbollah é um estado dentro do estado e tomou proporções gigantes. Tem escolas, hospitais.
Como conheceu o seu marido?
De férias, em Beirute. Tenho duas grandes amigas que são libanesas e que estudaram comigo em Lisboa, no Liceu Francês. O meu marido é um grande amigo dessas minhas amigas e, então, conhecemo-nos lá. Devia ter ficado três semanas e acabei por ficar dois meses e meio.
E a falta de igualdade entre sexos?
Existe, mas tenho a sorte de ter um marido muito europeu.
Os seus filhos são libaneses?
Os meus filhos são cidadãos do mundo. É assim que os quero educar. A minha filha está numa escola francesa no lado muçulmano da cidade. Estou convencida de que ela tem de estar ali. Aquele é o país onde ela vive, um país de todas as religiões. A constituição do Líbano diz que o primeiro-ministro tem de ser muçulmano sunita e o presidente tem de ser cristão maronita. Ainda não se fala de partidos. As pessoas são identificadas de acordo com a sua crença religiosa.
Participou nas manifestações do ano passado contra a Síria?
Sim, apesar de ter sido fortemente desaconselhada a não participar. Não vou dizer que foi por me sentir libanesa, porque não me sinto, mas fi-lo pelos meus filhos. Para que o país mudasse.
A culpa da guerra é dos israelitas, do Hezbollah, da Síria ou do Irão?
Acho que, infelizmente, é a guerra dos outros que está a ser feita no Líbano. Esta não é a guerra do Líbano. Para mim, os prisioneiros israelitas são uma desculpa. Não é razão para se bombardear um país.
Tem tido momentos de sobressalto desde que chegou a Portugal?
Cada vez que ouço um avião a passar continuo a achar que vamos ser bombardeados. Ainda agora saímos de casa e havia um incêndio e a Léa perguntou se era uma bomba. Nos primeiros dias, não lhe disse o que se estava a passar. Não queria que ela, com cinco anos, fosse confrontada com a ideia da guerra. Mas ao fim de dois dias ela perguntou-me porque é que tinham batido no aeroporto. Então eu expliquei-lhe que havia um país que não se entendia muito bem com o Líbano e que esse país se chama Israel.»
In Expresso